
primeiro conto
O Pôr da Lua
Contos ilustrados por ilustríssimos ilustradores

No vilarejo de Chisme, como em qualquer outro lugar do mundo, quase todos os habitantes eram fofoqueiros. Em pequenas sociedades, como no vilarejo em questão, a fofoca era mais frequente num nível exponencial, já que todos se conheciam e as formas de entretenimento eram escassas.
Contudo, nada de muito emocionante acontecia no vilarejo. E as próprias pessoas pareciam ser predispostas a já revelarem coisas de suas vidas, como detalhes de um casamento anunciado com orgulho, a aquisição de um novo cavalo, uma gravidez e o sucesso na horta. Até mesmo as desgraças não eram mantidas em segredo. Certa vez, Mérope, que estava prestes a se casar com Héctor, fez o maior escândalo no centro do vilarejo, gritando aos quatro cantos que havia pego o noivo com outra na cama. Jogou seu anel de noivado no lago, próximo ao moinho de água. Alguns mais criativos aumentaram a história dizendo que o anel foi pego pelo moinho e está preso lá até hoje, esperando os dois se reconciliarem.
A única exceção do vilarejo era Luna. Ninguém sabia praticamente nenhum detalhe da vida dela. Só sabiam que ela morava sozinha e que criava galinhas para vender ovos. Ela era uma das poucas pessoas que criava galinhas, então os seus negócios estavam sempre garantidos. Quando alguém oferecia uma boa quantia para comprar alguma galinha, ela recusava veementemente e insistia que só vendia os ovos. Luna também tinha alguns galos para a reprodução, mas também não os vendia. Seus galos e galinhas eram praticamente seus bichos de estimação.
Apesar de ser uma comerciante, Luna não abria espaço para conversas com os seus clientes. Ela se sentia mais confortável na companhia de suas galinhas do que na de humanos. Os interessados em comprarem os ovos deveriam depositar, por meio de um tubo na parede de sua casa, um envelope com a quantidade de ovos que queriam, juntamente com o valor, nome e endereço. Então, muito cedo, ou, do ponto de vista noturno, muito tarde, antes mesmo dos galos cantarem, Luna fazia as entregas deixando caixas de ovos na frente da casa de cada um que havia feito algum pedido. Desta forma, ela não trocava uma palavrinha sequer com nenhum habitante do vilarejo de Chisme.
Este jeito peculiar e antissocial de Luna, naturalmente, deixava todos os outros habitantes intrigados e mais curiosos ainda em saber sobre sua vida. Luna evitava sair de casa, mas era impossível não sair de vez em quando. Ela precisava lavar suas roupas no lago. Ir ao mercado, já que ninguém pode viver apenas de ovos. Ir à costureira para remendar algumas roupas ou encomendar novas. Porém, ela falava apenas o estritamente necessário, ninguém se lembrava de ter tido alguma conversa mais pessoal com ela. E não era por falta de tentativas. Quando alguém perguntava algo como: “Você não tem nenhum familiar pela região?”, Luna simplesmente desconversava dizendo “Acho que vai chover mais tarde”.
Bem, se estabelecer uma conversa com ela era difícil, pelo menos as pessoas podiam reparar na aparência dela. Luna era o tipo de pessoa com idade indecifrável. Não tinha rugas no rosto, mas o seu formato e ângulos mais pontudos também indicavam que não era nenhuma jovem. Nunca foi vista com nenhum homem e não recebia nenhum tipo de visita. É verdade que, de tempos em tempos, ficava por uma semana inteira fora, provavelmente em outro vilarejo. Nessas ocasiões, pagava uma quantia para o vizinho Juán e pedia para que ele cuidasse de suas galinhas e galos em sua ausência.
Nos últimos tempos, Luna parecia cada vez mais cansada. Pela primeira vez, chegou a atrasar algumas entregas. Quem a via pelo vilarejo quase não a reconhecia. Era como se estivesse dez anos mais velha, andava mais devagar, tinha os olhos cansados e passava ainda mais tempo isolada em casa. Mas ela continuava obstinada a não conversar com ninguém.
Quando alguém se aproximava e perguntava como ela estava e se precisava de ajuda, ela apenas dizia: “Estou bem, obrigada. Não preciso”. Ela não falava isso de forma rude, mas num tom que ficava claro que não queria mais conversa.
Um mês depois, as pessoas que iam fazer suas encomendas de ovos encontraram um aviso na entrada da casa de Luna. Ela passaria um tempo indeterminado fora do vilarejo e seus negócios estavam interrompidos por enquanto. Isto gerou uma nova curiosidade nas pessoas, que foram ao vizinho Juán para tentar buscar mais informações. Juán mal conseguia cuidar da própria horta naquele dia, já que conforme as pessoas iam descobrindo a novidade, iam importuná-lo com perguntas. Perdeu as contas de quantas vezes teve que dizer coisas como: “Não, eu não sei para onde ela foi”, “Sim, ela levou todos os galos e as galinhas. Ela me avisou de noite e logo partiu de madrugada numa carroça espaçosa”, “Não, não, ela não deixou nenhum ovo, não tenho o que vender”.
Esta nova notícia significava o monopólio dos ovos. Agora, o único que os vendia no vilarejo de Chisme era Diego, um homem careca e barrigudo que compensava a falta de cabelos com sua barba espessa. A cobiça de Diego fez o preço dos ovos disparar. Algumas pessoas deixaram de comprar, outras aproveitavam viagens a outros vilarejos para comprar esse alimento, tomando cuidado para não quebrá-lo durante o chacoalhar das charretes.
Luna nunca havia ficado tanto tempo fora. Como ela estava aparentemente doente e debilitada nas últimas vezes em que tinha sido vista, rumores de que ela havia falecido começaram a percorrer o vilarejo. Diego era uma das pessoas da teoria de que ela já sabia que ia morrer, por isso levou todas as suas galinhas e galos consigo nessa última viagem. Ela era sua concorrente na venda de ovos, por isso, Diego tinha um pouco de dificuldade de esconder que, por um lado, estava muito satisfeito com a ausência dela. Por outro lado, Mérope, a que terminou o noivado com Héctor, ouviu falar de alguém que ouviu falar de outro alguém que Luna estava vivíssima, que havia sido vista em outro vilarejo não muito distante.
O falatório sobre o paradeiro de Luna finalmente acabou quando, sem nenhum aviso, ela retornou de carroça numa segunda de manhã. O movimento nas alamedas do vilarejo não poderia ser maior, o oposto do cenário deserto no qual ela havia partido de madrugada três meses atrás. Era quase como se ela quisesse ser notada desta vez. As galinhas e os galos a acompanhavam, mas pareciam estar em menor número. O cavalo ia a um trote cansado e mais lento, indicando que provavelmente a viagem tinha sido longa e cansativa. Esse tipo de detalhe era observado por boa parte das pessoas.
Quando se é curioso e fofoqueiro, os mínimos detalhes importam, pois são como peças de um quebra-cabeça que contam uma história que não quer ser necessariamente compartilhada de forma direta. Porém, o detalhe que mais chamou a atenção das pessoas era a sua aparência: Luna estava jovem e saudável. Inquestionavelmente, era ela mesma, mas a doença de meses atrás havia ido embora completamente a olhos vistos. E não apenas isto, agora ela parecia estar melhor do que nunca. Apesar de ser tão cedo, seus olhos não demonstravam nenhum sinal de cansaço e suas olheiras eram inexistentes. Seu cabelo estava brilhante e sedoso e terminava em uma única trança baixa, chegando até um pouco mais do que o meio de suas costas. Seu sorriso continuava um mistério, pois, aparentemente, ela mantinha seu jeito reservado e não saia distribuindo sorrisos por aí. Mas isso não tornava o seu semblante fechado ou blasé. Apesar de não mostrar os dentes, Luna estava com uma expressão divertida, como se estivesse se lembrando de uma boa piada e rindo por dentro.
Nos dias seguintes, Luna voltou a vender os ovos no mesmo esquema de antes: sem contato direto com os clientes. O preço que ela praticava estava bem abaixo dos preços abusivos de Diego, que teve que se adequar novamente à concorrência e abaixar seu preço também. Infeliz com a situação, Diego foi o primeiro a espalhar rumores de bruxaria sobre ela. Como alguém que estava tão debilitada, que parecia estar no bico do corvo, poderia ter voltado não apenas recuperada, mas também com uma aparência bem melhor e rejuvenescida? Com certeza ela tinha feito algum tipo de ritual macabro para conseguir isso. E o fato das galinhas estarem em menor número indicava que algumas tinham sido usadas como sacrifício para esse tipo de ritual. Esta teoria logo se espalhou pelo vilarejo. Os habitantes começaram a elaborar formas de finalmente tentar investigar melhor a vida de Luna.
Foi decidido que Paco, um dos homens mais bonitos e solteiros do vilarejo, deveria tentar recorrer a seu charme para aproximar-se de Luna e obter alguma informação sobre a dita cuja. Ele não ficou muito confortável em ser usado pelas pessoas do vilarejo para bisbilhotar a coitada, mas ele tinha que admitir para si que também estava curioso. Então, sem um plano muito bem definido em mente, Paco foi até a porta da casa de Luna ao entardecer com seu envelope de encomenda de ovos em mãos, para justificar sua presença ali. Observou as galinhas no pátio gradeado vivendo as suas vidas pacatas de aves que não voam. Realmente, pareciam estar em menor número. Será que, simplesmente, algumas não acabaram fugindo durante a viagem? Ele não acreditava naquela teoria ridícula de ritual macabro. Uma das janelas estava entreaberta e, antes de conseguir ver a Luna por uma fresta, o som de seu choro chegou aos seus ouvidos. Ninguém nunca tinha presenciado um momento tão pessoal da misteriosa mulher, e Paco achou que bater na porta neste momento não seria uma boa ideia. Estava prestes a dar meia volta, ir embora e tentar vir outro dia, quando ouviu a porta se abrindo às suas costas.
Luna não tentou esconder o fato de que estava chorando. Com seus olhos inchados, ela fixou o olhar no rosto de Paco, que ficou sem graça e sem palavras. Não estava esperando que Luna abrisse a porta e ficou mais surpreso ainda quando ela o convidou para dentro ao dizer, com uma voz ainda um pouco embargada, um simples “Entre”. Paco, provavelmente, era a primeira pessoa do vilarejo que entrava naquela casa. Sem conseguir se conter, Paco começou a reparar em todos os detalhes do aposento: as cortinas brancas e compridas, uma cadeira de balanço de madeira, caixas de ovos vazias em cima de uma mesa, um vaso com um girassol que parecia já ter visto dias melhores, um fogão à lenha que também servia como lareira, livros surrados numa estante... Um lar muito comum. É natural do ser humano abrir espaço para a fantasia e para a criatividade quando se trata do desconhecido. Mas tudo o que se vê com os próprios olhos perde um pouco o charme, justamente pelo fato de acabar de vez com a possibilidade de imaginarmos como seria. A realidade se impõe, e as fantasias se recolhem. Descobrir como era a casa dela chegava a ser decepcionante. Mas o que ele estava esperando? Uma estátua de pedra pomposa? Incensos e cristais espalhados por toda a casa? Um quadro com familiares de Luna? Sim, um quadro com seus parentes! E não havia nada, nada que indicasse qualquer parentesco com alguém.
“Deve estar surpreso por eu tê-lo convidado a entrar”, Luna disse de repente, fazendo Paco desviar o olhar do aposento e encará-la, um pouco sem graça por estar claramente bisbilhotando.
Antes de ela sumir por uns meses, Paco, mesmo que em raras ocasiões, já tinha escutado a voz de Luna algumas vezes e, desta vez, ela soava diferente. Definitivamente, não era apenas a aparência dela que parecia ter mudado.
“Pra falar a verdade, estou sim. Você sempre foi tão reservada e agora parece até mesmo hospitaleira. Como você está?”
“Na verdade, eu não estou sendo eu mesma ultimamente.”
E então, essa nova Luna contou tudo. Não porque ela tivesse sentido algum tipo de ligação especial logo de cara com ele, mas sim pelo simples motivo de precisar desabafar com alguém sobre as coisas difíceis pelas quais estava passando. E ele foi o primeiro a aparecer em sua porta. Ela explicou por que havia chegado com uma expressão divertida no vilarejo, mas também contou o motivo por estar chorando. Esclareceu até por que havia menos galinhas com ela agora. Paco, surpreso com a sinceridade dela, sentiu-se desconfortável em estar lá para bisbilhotar.
“Olha, você estará certa em supor que estou aqui só porque as pessoas queriam saber mais sobre a sua vida. Mas o que você me contou é tão pessoal, que prometo que não vou dizer aos outros. Na verdade, me sinto até à vontade para te contar um segredo meu.”
“Paco, você não precisa. A não ser que realmente queira.”
Aquela Luna, de perto, não era intimidadora no fim das contas. Tinha um olhar compreensivo que parecia que não faria julgamentos precipitados.
“O plano das pessoas era que eu te seduzisse”, a nova Luna não conseguiu conter uma risadinha, mas fez um gesto para que ele prosseguisse. “Mas a verdade é que eu nem me atraio por mulheres.”
“Então, quer dizer que você se atrai por... ?”
“Também não. Eu não me atraio assim por ninguém.”
Ela ficou surpresa com aquela revelação, mas não achou que havia algo de errado com ele. Não era da conta de ninguém com quem ele se relacionava ou, no caso, deixava de se relacionar. Mas ela entendeu a pressão que ele sentia. Devia ser o único rapaz da sua idade do vilarejo que não tinha nenhuma pretendente. Então propôs algo para ele.
“Você disse que não vai contar nada para ninguém sobre o que eu desabafei para você, mas, na verdade, eu não me importo se você contar ou não. Mas acho que as coisas podem ser muito mais divertidas se só nós soubermos a verdade sobre minha aparência mais jovem. Além disso, podemos ser amigos, mas aos olhos dos outros, podemos fingir ser um casal.”
Ela deixou um pouco a tristeza de lado quando Paco lhe contou que suspeitavam que ela era uma bruxa que havia feito um ritual macabro. Deu gargalhadas que não cessavam. Teve que se recompor tomando um copo d´água. Olhou para o copo e foi aí que teve uma ideia. Se achavam que ela era uma bruxa, então seria uma. Mas seria uma bruxa do bem, apagando aquela história de ritual.
No dia seguinte, Paco espalhou para todos a notícia de que Luna contaria o seu segredo de rejuvenescimento na praça central do vilarejo de Chisme ao entardecer de sábado. As pessoas começaram a encher Paco de perguntas, mas ele se limitou a dizer que deveriam esperar até sábado para ouvirem o que Luna tinha a dizer. A notícia do evento se espalhou como chamas e chegou até os vilarejos vizinhos. Todos estavam morrendo de curiosidade para ouvir a história de Luna que, muito atipicamente, estava disposta a dar algum detalhe sobre sua vida. A praça principal de Chisme já estava com uma boa movimentação no começo da tarde e, a cada hora, mais pessoas chegavam. Parecia que iam assistir à final de algum campeonato, ou que artistas muito famosos estavam prestes a se apresentar. A Luna rejuvenescida chegou com uma galinha embaixo do braço. Todos os olhares estavam sobre ela, até as crianças estavam em silêncio na expectativa de ouvir o que ela tinha a dizer. Ela subiu em um pequeno palanque e, ao observar todos aqueles rostos curiosos, ávidos para o que ela tinha a dizer, teve a impressão de que poderia iniciar uma revolução com seja lá o que dissesse.
“Caros cidadãos do vilarejo de Chisme”, e ao perceber rostos que nunca tinha visto antes, acrescentou: “E arredores. Estou impressionada com a quantidade de pessoas que vieram me ouvir, obrigada por terem vindo. Os rumores de que eu sou uma bruxa chegaram aos meus ouvidos e venho aqui me defender”, ela ergueu a galinha que levava consigo e deu um beijo em sua asa. “Nunca faria mal a nenhuma de minhas galinhas ou galos, muito menos em um ritual macabro. Eles são como animais de estimação para mim! O que aconteceu foi que deixei algumas com uma amiga durante a minha viagem, simples assim. Mas vocês devem estar se perguntando como eu me curei da minha doença e, ainda por cima, fiquei mais jovem, não é? Asseguro-lhes que não sou uma bruxa, mas sim, uma curandeira. Durante as minhas viagens, sempre suspeitei que houvesse águas medicinais nas proximidades e, na última delas, quando minha saúde estava por um fio, finalmente descobri a fonte da juventude!”, ela disse mentindo na cara dura.
Uma idosa de cabelos ruivos gritou na multidão:
“Então, onde fica esta fonte da juventude?!”
“Ahn... Não posso revelar. A Natureza tem suas leis. Quando algo com propriedades tão maravilhosas é explorado por muitas pessoas, os feitiços curativos se dissipam. Além disso, essa água só funciona dessa forma depois de eu executar alguns rituais”, improvisou aquela Luna que estava começando a pegar gosto por falar em público. “Mas trago boas notícias! Em uma semana, com a ajuda de algumas charretes, poderei trazer galões de água suficientes dessa fonte para todos! Tragam suas garrafas de vidro para minha casa a partir da semana que vem. Cobrarei o preço de uma garrafa de água comum, pois acredito que todos merecem acesso a esse tipo de feitiço!”
A multidão olhou para Luna, primeiramente de forma desconfiada, mas um burburinho foi se formando aos poucos e as pessoas pareciam convencer umas às outras de que era verdade. Afinal, tinham bem à sua frente a maior evidência: aquela Luna esbanjando saúde e jovialidade, sendo que, poucos meses atrás, ela parecia muito mais envelhecida e cansada. Aproveitando o tom de aprovação das pessoas, a Luna curandeira puxou o Paco para cima do palanque e anunciou:
“Também tenho o prazer de informar que Paco e eu nos tornamos noivos. Em breve, partiremos em uma viagem para aproveitarmos mais tempo juntos.”
Mesmo sabendo que essa parte também era mentira, Paco não conseguiu deixar de corar. Acenou de forma idiota para os cidadãos e logo desceu do palanque e se misturou aos outros para deixar de ser o centro das atenções. O vilarejo de Chisme estava em êxtase! Depois de finalmente saberem um pouco sobre a vida pessoal de Luna, ela ainda compartilharia o segredo de sua saúde.
Nos dias seguintes, Paco começou a chamá-la de Luna, a bruxona do bem. O que fazia os dois rirem enquanto coletavam, em barris e galões, o máximo de água possível de um riacho próximo qualquer. Paco se sentia um pouco culpado com aquela mentira e, apesar da amizade que só crescia entre os dois, ele questionou a amiga se era ético ou não o que estavam fazendo.
“Não estamos fazendo nada de errado. Vamos vender água e temos todo esse direito, já que estamos tendo o trabalho de transportá-la. O preço será o mesmo praticado em qualquer outro estabelecimento. E eu não menti sobre as propriedades da água, realmente beber água faz bem à saúde e pode prolongar a vida. Talvez eu tenha exagerado um pouco nesta propaganda? Talvez. Mas exageraram muito mais em acharem que eu era uma bruxa que fazia rituais macabros com minhas pobres galinhas! Estou só devolvendo com a mesma moeda.”
Na semana seguinte, como prometido, a água começou a ser vendida. Algumas pessoas traziam tantas garrafas d’água para serem cheias que mal tinham forças para transportá-las na volta. O empreendimento foi um sucesso tão grande que Paco e a bruxona do bem logo tiveram que providenciar novas viagens para reabastecerem seus galões e barris. Vender aquela água tão desejada dava um dinheiro exorbitantemente maior do que o ganho por meio da venda dos ovos. Em um mês, os dois tinham dinheiro suficiente para fazerem várias viagens como o casal feliz que pintavam ser para o vilarejo. Eles podiam não ser um casal, mas estavam felizes com a grande amizade que estava surgindo.
Certa manhã, Paco anunciou aos seus familiares que faria uma viagem com Luna. Como da última vez, todos os galos e galinhas também foram colocados numa charrete para acompanhar a dona. O que deixou Diego, o outro vendedor de ovos, muito satisfeito. Enquanto isso, uma piada circulava no vilarejo: diziam que, da próxima vez que Luna voltasse, ela teria a aparência de uma criança. Os dois amigos não tinham data para voltar, pensavam em passar em diversos lugares, inclusive no litoral, que era muito mais distante, mas estavam com dinheiro para fazerem longas viagens. Saíram de noite e, um pouco antes do amanhecer, chegaram ao primeiro destino: o vilarejo de Rompecabezas.
“Sol, sua casa é linda!”, exclamou Paco para a amiga. Diferente da casa da mãe, o lar de Sol não tinha nada de comum. Pinturas de paisagens exuberantes enfeitavam as paredes. Almofadas revestidas de tricôs de várias cores estavam no sofá da sala. A janela dava para uma cadeia montanhosa que, segundo Sol, proporcionava o amanhecer mais lindo da região. Mas era em seu quarto onde havia a maior preciosidade de sua casa: um quadro pintado em tinta a óleo registrava a incrível semelhança entre mãe e filha. Os sorrisos idênticos, os cabelos loiros bem volumosos, quando não estavam presos em uma trança, as feições incrivelmente parecidas. Poderiam muito bem ser irmãs e gêmeas, inclusive. As poucas diferenças entre elas estavam na expressão um pouco mais contida de Luna, a mãe (mesmo sorrindo, ela exalava um ar mais sério), e as rugas muito tímidas para a idade dela.
“Foi aqui que minha mãe passou seus últimos dias”, relembrou Sol com um sorriso emocionado. “Antes de morrer, ela me fez prometer voltar à Chisme e manter os negócios dela, fingindo que eu era ela. Mesmo morta, não queria chamar a atenção. Só minha mãe mesmo! Mal sabia ela que a minha ida ao seu vilarejo só chamaria mais atenção ainda para ela! Mas foi divertido, por mais estranho que possa parecer, me passar por minha mãe foi um bom jeito de lidar com o luto.”
Neste momento, Paco percebeu algumas galinhas no quintal vizinho.
“Olha lá, as galinhas usadas no seu ritual de rejuvenescimento!”
“Deixe de ser besta!”, Sol riu. “O único momento em que eu contei a verdade foi quando eu disse que deixei parte das galinhas com uma amiga vizinha. Sempre achei um exagero a quantidade de galinhas que minha mãe tinha e achei bom deixar algumas aqui, para deixar o pessoal do meu vilarejo com mais alguns ovos disponíveis.”
Paco e Sol aproveitaram muito bem a falsa pré-lua de mel deles viajando para vários lugares com o dinheiro ganho por meio da água milagrosa. Não se sentiam culpados, apenas aproveitadores da curiosidade alheia. Não havia um lugar sequer por onde passassem que não causassem certo burburinho. Aparentemente, eram um casal jovem e lindo. E pelos vilarejos daquela região, isso já era motivo mais do que suficiente para virarem assunto. Depois de algumas semanas, finalmente chegaram à praia. Foi lá que observaram a Lua e seu reflexo no mar, apreciando a maresia noturna. Caíram no sono observando as estrelas e acordaram com os primeiros raios de sol, acompanhados apenas pela calmaria da Natureza, sem nenhum curioso ao redor.
